Aliança de Misericórdia
Imagem: Welinton Moraes
O ato de doar-se aos pobres e aos “irmãos”, termo usado por entidades religiosas para se aproximar das pessoas na Cena do Uso, em São Paulo, é caracterizado por missões de resgate e amparo.
No fluxo da Cracolândia, a comunidade católica Aliança de Misericórdia tem oferecido apoio emocional, acolhimento e orientações de cura. Seu principal objetivo é garantir a dignidade humana básica.
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A comunidade católica Aliança de Misericórdia atua nos territórios das Cracolândias de São Paulo desde 2003. No entanto, as ações realizadas no primeiro domingo de cada mês, a Missão Cracolândia, foi concretizada no ano de 2020.
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Em meio à movimentação das ruas e à imensidão urbana da maior cidade da América Latina, o objetivo de ajudar ao próximo se intensifica com o apoio de missionários, colaboradores, voluntários, amigos e benfeitores. Entre as missionárias engajadas desde o início está Mary de Calcutá, que regularmente visita à Cena do Uso, levando esperança e amparo àqueles que mais precisam. ‘É devolver de volta a dignidade deles”, disse Mary de Calcuta
Meu processo de conversão começou em 1976 e foi algo gradativo em minha vida. Lembro-me de um dia em que estava indo ao supermercado e, ao passar por debaixo de uma ponte, vi crianças em condições tão degradantes que pareciam estar se desumanizando. Aquilo me marcou profundamente e senti um chamado para ajudar. Naquele momento, preparei uma marmita e voltei para levar para a família que estava ali
- Mary de Calcutá
O nome que leva hoje foi inspirado na experiência religiosa que a aproximou de Madre Teresa de Calcutá, santa cuja trajetória a tocou profundamente. Após aquele encontro marcante sob a ponte, Mary passou a estudar mais sobre Madre Teresa, identificando-se com sua missão de cuidar dos mais necessitados. Essa identificação a levou a se dedicar a projetos da Igreja, atuando em favelas e até mesmo em contextos de tráfico.
No ano 2000, ao estabelecer vínculos com a comunidade Aliança de Misericórdia, recebeu o convite da fundadora Maria Paula para integrar a comunidade e adotar o nome Mary de Calcutá, em homenagem à santa que tanto a inspirava. “Foi um chamado que mudou minha vida e me trouxe até aqui”, reflete Mary.
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Foi um chamado que mudou minha vida e me trouxe até aqui
- Mary de Calcutá
Em prol dos direitos humanos
A Aliança está presente em 42 cidades no Brasil, e alcançou outras 24 cidades em oito países: Portugal, Estados Unidos, Polônia, Bélgica, Venezuela, Itália, República Dominicana e Moçambique.
Sem escolher quem deve ser acolhido, a atuação abrange ações que vão da primeira infância à velhice, por meio da oferta de serviços sociais, educacionais, culturais, de acolhimento, de evangelização, entre outros. Dentre as cidades que contam com projetos de reintegração no estado de São Paulo são: Álvares Machado, Boituva, Itapetininga, Sorocaba Ibiúna, Capela do Alto, Ribeirão Preto, Salto, Itú, Piracicaba, Jaú, São Lourenço da Serra, Praia Grande, São José dos Campos, Fartura,Tremembé, Tatuí, São Roque, Sumaré, Rio das Pedras Barretos, São Paulo.
Conforme o Relatório de Atividades da instituição de 2023, são cerca de 1.235 Missionários de Aliança e Amigos Missionários, espalhando através dos 35 programas e projetos sociais ações evangelizadoras que chegam ao total de 8 mil ações. Dentre os impactos pela evangelização em situação de rua, computando dados de São Paulo e Manaus foram cerca de 39 mil movimentos.
Em 5 de dezembro de 2023, pela terceira vez consecutiva, quando a Aliança de Misericórdia celebrou a conquista do Selo de Direitos Humanos e Diversidade da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo.
A distinção, concedida pela terceira vez consecutiva, reconhece os esforços exemplares da Aliança em prol dos direitos humanos e da promoção da diversidade.
O que levou a instituição a ganhar o prêmio foi o “Programa Águia” de moeda social, dedicada à Educação Financeira, que funciona no espaço da Casa Restaura-me em São Paulo, reforçando o compromisso com o estímulo da reinserção na sociedade.
Da Capela do Moinho ao Fluxo
A primeira etapa da Missão Cracolânida começa na Capela Nossa Senhora Aparecida, na favela do Moinho, localizada no centro de São Paulo, onde a Aliança conduz outros projetos sociais. A primeira etapa envolve um momento espiritual cristão, seguido às 8h de um café reforçado e orientações sobre a ação na Cena do Uso. Dentre as principais recomendações estão: andar em duplas, sempre um homem e uma mulher; evitar o uso de celulares ou gravações; orar apenas com o consentimento das pessoas e evitar distribuir bens materiais.
Em seguida, às 10h, o grupo de voluntários e missionários realiza uma procissão da capela até a Cena do Uso, levando a imagem do Santíssimo Sacramento e de Nossa Senhora Aparecida. Esse momento é marcado por orações e interações emocionantes com pessoas em situação de rua, algumas das quais recitam orações junto ao grupo.
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Com o grupo principal na capela, uma equipe de apoio da Aliança monta a Tenda da Saúde, Tenda do Bom Samaritano, Tenda da Música, Tenda do Encaminhamento e a Tenda de Oração.
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De acordo com Ana Paula Pereira, missionária da Aliança de Misericórdia e coordenadora da Missão Cracolândia, a abordagem respeita a decisão de cada indivíduo, sem forçar ninguém a buscar auxílio nas casas de acolhida. Aqueles que optam por deixar a Cena do Uso são encaminhados para uma tenda de triagem, onde são avaliados com base em critérios como passagens anteriores por casas de acolhida. Ana destaca também que a Aliança mantém parcerias com outras instituições, como a Missão Belém, Madre Teresa e Fazenda da Esperança.
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Desamparados e sem vínculos afetivos, quando a gente cria esse vínculo é como se déssemos motivações para eles saírem dessa situação
- Ana Paula Pereira
A missão na Cracolândia termina às 14h e os voluntários e os missionários da Aliança de Misericórdia fazem uma partilha contando a experiência vivida no território da cena de uso.
Apesar do forte impacto dessa ação, a Aliança depende de parceiros e não tem capacidade para acolher todos de uma só vez. Para o café contam com doações de benfeitores e o espaço do almoço acontece em parceria com a Igreja Batista.
Invisível para a sociedade e acolhido no fluxo
Em meio à multidão de pessoas da Cracolândia, em São Paulo, a invisibilidade é deixada de lado quando a Aliança de Misericórdia chega no fluxo.
Um casal de frequentadores, cidadãos comuns com empregos, família e moradia compartilham da triste realidade de serem atraídos pela Cena do Uso. Durante uma ação da Missão Cracolândia da Aliança de Misericórdia, marido e mulher relatam em entrevista exclusiva a reportagem Apoio In Fluxo que frequentam o local para se sentirem pertencentes ao ambiente.
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Para onde vão os irmãos do Fluxo?
Uma das dificuldades da Missão Cracolândia é garantir suporte suficiente para acolher todos os irmãos que decidem sair da Cena do Uso. Assim, aqueles que não encontram vaga nas casas de acolhida são encaminhados para a “Casa Restaura-me”, onde recebem acolhimento por meio de atividades complementares.
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Os Núcleos de Convivência, denominados “Casa Restaura-me”, oferecem às pessoas em situação de rua atendimento às suas necessidades básicas e primárias, como alimentação e higiene, que é o principal objetivo dos usuários.
Porém, ao frequentarem o espaço, participam das formações, convivem com funcionários, missionários e voluntários, eles iniciam um processo de reconhecer em si suas qualidades, habilidades, fraquezas e limitações. Os participantes refletem sobre a vida e nesta etapa e podem solicitar sua acolhida para um local de recuperação da dependência química ou ainda por um telefonema à família. Assim, a metodologia gera a restauração do humano e facilita uma saída qualificada das ruas.
Os Núcleos também oferecem atendimento social, jurídico, psicológico e médico (atendimentos realizados por voluntários ou parcerias), cursos profissionalizantes, atividades esportivas, culturais, lúdicas e pedagógicas, orientações básicas de saúde, aferição de pressão e curativos; encaminhamento para rede de assistência social para a confecção de documentos (RG, CPF, certidão de nascimento) e orientações para solicitações de benefícios, aposentadorias e ordens judiciais.
Casas de Acolhida
As Casas de Acolhida para adultos da Aliança de Misericórdia fazem parte de um programa que existe há mais de 10 anos para a acolhida de adultos e idosos em situação de rua, drogadição, abandono e/ou vulnerabilidade social.
Nesses locais, o acolhido percorre o “Caminho” por um período mínimo de 1 ano, onde, através de atividades de laborterapia e atividades comunitárias, passará pelo processo de afastamento dos males da rua e a restrição do fácil acesso às drogas e ao álcool, não sendo utilizadas para tais fins metodologias como regime de internação e intervenções com medicamentos.
Casas de Triagem
O objetivo principal das Casas de Triagem é prestar acolhimento temporário à população em situação de rua, risco e vulnerabilidade social e, principalmente, oferecer um atendimento humano, de saúde, social e cultural, para aproximar e obter a confiança, motivando-as a ingressarem no processo de “restauração”.
No cotidiano, estas pessoas passam os dias divididos entre formação espiritual e humana, trabalho e lazer. Terminado esse tempo, geralmente de 30 dias, são direcionados para o próximo passo, que é o encaminhamento a uma Casa de Acolhida da Associação Aliança de Misericórdia, onde trilharão o “Caminho”, ou em outra instituição.
Casas de Reinserção
Após o tempo necessário para reinserção social dos maus hábitos da rua e verdadeira transformação de vida, as pessoas acolhidas recebem apoio para iniciarem uma atividade laborativa, para proverem o próprio sustento, e/ou retornarem para suas famílias de origem.
Passam a morar em uma Casa de Reinserção (alugada pela própria Associação) que pode ser ou não dentro da Casa de Acolhida, na qual, após conseguirem um trabalho, auxiliam na economia da casa e continuam sendo acompanhados até possuírem autonomia para a reinserção completa.
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Casa Restaura-me
Localizada no bairro do Brás, o Núcleo de Convivência para Adultos em Situação de Rua, Casa Restaura-me tem se destacado como um ambiente acolhedor que busca resgatar a dignidade humana e promover mudanças profundas na vida dos cerca de 600 atendidos diariamente.
A Casa Restaura-me é coordenada por José Gilvan, psicólogo de formação e gerente da instituição. Dentre os seus trabalhos estão a de entender cada trabalhador e pessoa acolhida. O horário de atendimento é das 8h às 16h, todos os dias, sendo voltado para atender pessoas em situação de rua.
O nosso diferencial como núcleo de convivência não é só ofertar as questões básicas, que seriam alimentação, higienização, mas primeiro a questão do acolhimento
- José Gilvan
José explica que o grande objetivo é resgatar a identidade dos acolhidos e compreender os motivos que os levaram às ruas, para a instituição poder ajudá-los a ressignificar suas vidas e facilitar o retorno ao convívio social e familiar.
José GIlvan
Enquanto há vida, há esperança
- José Gilvan
José esclarece que mesmo com o amplo apoio de missionários e da sociedade civil, a Aliança de Misericórdia, depende de mais ajuda para continuar evangelizando e oferecendo suporte às pessoas em situação de vulnerabilidade social. É por meio dessa rede de amparo que os usuários de substâncias químicas se sentem incentivados a deixar o ciclo de uso.
Gumercindo Monteiro é um exemplo dos acolhidos da Aliança
de Misericórdia. Conheça a trajetória deste colaborador que
já vivenciou a Cracolândia e hoje, reintegrado socialmente, visa
incentivar outras pessoas por meio do seu trabalho na
Casa Restaura-me.